quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Entrevista com Leonel Henckes preparador corporal dos atores

Leonel Henckes

Explique um pouco sobre o seu trabalho durante a preparação corporal dos atores.

O trabalho realizado em “As Velhas” foi bastante especial para mim. Estar envolvido em todo o processo de criação do espetáculo acompanhando o magnífico trabalho de Luiz Marfuz, do elenco e de toda a maravilhosa equipe foi fascinante.
Quando Marfuz me chamou para ser preparador corporal do elenco dizendo crer que o trabalho que desenvolvo se encaixava no que ele estava buscando como encenador, fiquei muito feliz e ao mesmo tempo reticente pelo desafio que representava. Recebi o texto e Marfuz disse querer explorar um “corpo fora do lugar”, “um corpo transformado por uma geografia” e abordar um “sertão subjetivo”. Sugeriu ainda, que explorássemos animais e plantas, escolhidas por cada ator, no processo de criação.
De posse dessas informações e num diálogo constante com o diretor, comecei a conduzir os laboratórios de experimentação e direcionar o foco de atenção dos atores para sua corporeidade e as potencialidades expressivas dela. Por meio de procedimentos diversos, fui conduzindo-os a acessar alguns princípios, (atenção, ritmo, foco, fluxo, equilíbrio/desequilíbrio, segmentação das partes do corpo, elementos plásticos, qualidades de energia, etc) fui oferecendo uma caixa de ferramentas. Estas ferramentas convertiam-se em portais para a descoberta de registros de presença, formas corporais, movimentos, gestos e posturas. Esse direcionar o foco de atenção para si mesmo como corpo, dotado de uma memória e com possibilidades de ação e reação que explodem os limites do comportamento realista cotidiano abria espaço para que cada um buscasse em si o “corpo fora do lugar”, o “sertão subjetivo”.
A utilização de estímulos como animais e plantas foi muito importante neste trabalho uma vez que obrigava o deslocamento de uma lógica de ação humana social para uma forma de ação humana instintiva e animal. Os modos de andar, a energia de cada personagem, seu comportamento, suas ações, tudo saiu dessas matrizes.
Além disso, Marfuz criou espaço para que o material vindo dos laboratórios de experimentação corporal fossem pontos de partida para as improvisações e marcação das cenas. Isso fez com que a criação viesse do ator/atriz no caminho mais tangível possível, ou seja, de sua fisicalidade. Nesse sentido, havia uma preocupação em estimulá-los a pensar fisicamente em ação com movimentos conectados com impulsos internos. A consciência de que os movimentos não poderiam ser periféricos e de que o trabalho exigia um envolvimento integral do corpo. A ordem era o excesso, o exagero, o desperdício de energia para depois, sim, dosar e lapidar na cena.
Assim, durante o trabalho, levei elementos de arte marcial, yoga, kalaripayattu, capoeira, os exercícios plásticos desenvolvidos no Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski, princípios de mímica corporal dramática, exercícios da antropologia teatral, exercícios inventados por mim. A ideia era levar eles a trazerem coisas do seu repertório também. Eu acredito que cada corpo é uma linguagem hibrida que traz muitas referências. Fazer o ator olhar-se como corpo e capitanear seu processo numa auto-pesquisa de criação de personagem, de ação, via corpo acaba gerando um percurso criativo mais rico e vivo.
Meu trabalho, portanto, foi mais de guiar os atores em uma experiência corporal a partir do acesso ao repertório de cada um para, a partir dessas singularidades, construir um “corpo fora do lugar” e plasmar um “sertão subjetivo”. Pensar o corpo que é o ator. Esta totalidade psicofísica em diálogo com o espaço, com uma geografia, com experiências passadas e futuras, com suas vivências na arte.
Houve, também, uma adaptação para a realidade heterogênea do elenco. Em suas diferenças de idade, estilo, dificuldades, bloqueios físicos e psíquicos. Assim, fui buscando acessar cada um e conduzi-los à uma experiência intensa, pulsante, viva.
Minha preocupação sempre esteve em criar não apenas um corpo fora do lugar, como queria o diretor, mas, um corpo fora do lugar que estivesse sustentado por uma pulsação interna. Um fluxo energético, uma conexão com impulsos reais da vida orgânica. Que fugissem dos clichês de atuação na cena e na vida.
Outra preocupação também era fazer o trânsito entre uma corporeidade cotidiana e uma corporeidade estilizada. Fazer esse trânsito sem perder a conexão com uma atenção dilatada, dinâmica e em fluxo. Fazer essa mudança de modo funcional era um desafio e passava pela capacidade de produção de sentido de cada ator e a capacidade de se entregar ao processo e acreditar no que está fazendo por mais estranho que seja. Tudo isso é fundamental que ocorra de maneira integrada com a participação constante do diretor e com a disponibilidade e generosidade do elenco e acho que no caso de “As Velhas” a genialidade e experiência de Marfuz foram fundamentais, além, é claro do talento e experiência do elenco tendo em vista o pouco tempo no qual o processo foi desenvolvido.

Quais referências utilizou para incorporar os movimentos corporais nas cenas?

Como eu disse anteriormente, o processo de trânsito, do treinamento para a cena se deu num diálogo com o encenador. Eu acho que existem duas instâncias do processo. Um é o dos laboratórios experimentais onde ocorre a afinação dos atores/atrizes e o levantamento de materiais que podem se transformar em ação física. Figuras abertas, vazadas, com registros de presença e energia que pudessem ser direcionados para a proposta da cena. Ademais, o trabalho estava focado na aquisição de um estado de atenção, prontidão e para uma qualidade de precisão. E, nesse sentido, os exercícios eram direcionados para as referências da montagem, ou seja, pesquisar o corpo atentando para as relações entre personagens, intenções e situações do texto. Marfuz conduziu um processo bastante “rizomático” nesse sentido, o trabalho de corpo, de voz, a leitura do texto e mesmo a marcação de cenas se deu quase simultaneamente numa rede de interferências inevitável e produtiva.
O que eu fazia nos laboratórios, era conduzir um percurso de auto-pesquisa para a criação de um repertório. Também, exercitar a improvisação, a criação e a ação pela via do corpo mais do que pela via dos diálogos apenas e da interpretação realista. Quando eles iam para o processo de improvisação e marcação, eles estavam condicionados em um pensamento-ação psicofísico e não apenas interpretativo. Esses elementos foram levados para a cena e lapidados. O trabalho foi bastante colaborativo nesse sentido. Eu acho que o trânsito do treinamento para a cena vai se dando muito no momento em que ocorre uma produção de sentido que vai ao encontro do texto, da proposta do encenador e do que cada ator está buscando. É essa produção de sentido que gera situação, cena, personagem. As figuras, movimentos, gestos começam a se delinear como estrutura cênica e ação física.
De outro modo, a cena também fazia surgir demandas corpóreas que precisavam ser exploradas, então, tudo foi uma via múltiplas mãos. No final, ainda contamos com a contribuição de Mariusa que deu um tratamento coreográfico em algumas cenas.
O que me deixa feliz no processo é ver que a criação se deu via corpo e por isso mesmo, via cada ator no sentido mais amplo que isso possa ter e, por isso, cada gesto, cada micro-movimento trás consigo uma carga que vem de camadas mais sutis e já nasceu com um conteúdo, com uma energia, com uma “intensão” e não como forma no espaço apenas.

Quais técnicas utilizou para aplicar a forma de andar e de expressar corporalmente as características dos sertanejos nos atores?

A busca não foi por características sertanejas estereotipadas, a busca era por um “corpo fora do lugar” e um corpo “transformado por uma geografia”. O movimento foi, portanto, o de acessar o sertão de cada um pela via tangível da nossa vida, ou seja, o corpo. Assim, como vejo o sertão, que sertão está registrado na minha memória corporal? Que impulsos meu corpo gera ao me conectar com este universo?  O que eu fiz foi potencializar o trabalho de criação via corpo e experimentar registros de presença e energia diversos. Abrir, também, os canais expressivos e o acesso ao manancial simbólico e referencial de cada ator em relação ao universo sertanejo.
Nesse sentido, meu trabalho está centrado na ativação de dois centros energéticos, o centro pélvico e o plexo solar bem como o acesso à uma qualidade de atenção dilatada e em fluxo. Busco, ainda, uma prontidão e precisão na percepção dos impulsos internos e sua manifestação em ação corporificada. Dentro disto, foram inúmeras as estratégias buscadas atentando a singularidade de cada ator/atriz e sem excluir as referências que cada um já trazia, ao invés de negá-los, potencializamos. 

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