segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Entrevista com Luiz Marfuz sobre "As Velhas"

Imagens do acervo pessoal de Luiz Marfuz

Luiz Marfuz é doutor em Artes Cênicas e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Arte-educador, tem no currículo a direção de vários espetáculo, entre eles: “Comédia do Fim” (2003) – Troféu Espetáculo do Ano e “Só” (2002) - ambos com textos de Samuel Beckett, “Mãe Coragem”, de Bertolt Brecht (1998), “Cuida Bem de Mim” (1996), co-autor com Filinto Coelho. Marfuz é o diretor do espetáculo “Policarpo Quaresma”, baseado no romance de Lima Barreto, e do espetáculo "As Velhas", criado a partir do texto de Lourdes Ramalho.

A jornalista Claudia Pedreira é assessora de imprensa para o espetáculo “As Velhas” e fez uma entrevista com Luiz Marfuz, diretor do espetáculo, onde aborda questões sobre o processo de construção do espetáculo, partindo do texto até o trabalho com os atores. Questões como política de editais e sobre a estética da temática sertaneja. 

Claudia Pedreira - A versão do texto clássico As Velhas, de Lourdes Ramalho, que você apresenta tem o que de recriação em relação ao original? Os atores inseriram algum improviso ou contribuição própria?

Luiz Marfuz - O texto original trata de questões universais como amor, ciúme, vingança, poder e outras que, embora ainda persistam, hoje são vistas sob outros ângulos, a exemplo da virgindade, das frentes de emergência, da indústria da seca. Além disso, o texto traz o linguajar típico do falar nordestino; o que naquela época (1975), era considerado uma novidade e uma tentativa de inserção de uma “língua” ausente dos palcos brasileiros. Hoje a televisão explora isto ao limite, banalizando esta descoberta. Então fiz uma opção, deixando os atores falarem como eles são: nordestinos baianos. Soava muito estranho, no início dos ensaios, o ator-nordestino imitando sotaque de personagem paraibano ou potiguar. É claro que há uma forma de falar, uma sintaxe própria, com neologismo e palavras não-usais que estarão ali em cena, mas apropriado pela voz e corpo do ator que está contando aquela história de duas velhas que atravessam o sertão em busca de amores perdidos. Para isso, fizemos pesquisas físicas, improvisações e construção de partituras vocais e corporais para construir o sertão de cada um. E a contribuição dos atores é decisiva neste processo.

CP - Como se dá a transposição da obra para o palco do SESC-Pelourinho?

LM - Queremos uma aproximação com o público, como se o espectador respirasse junto com os atores, sem que necessariamente contracene com eles. Por isso, vamos instalar uma estrutura cenográfica no Teatro Sesc-Senac Pelourinho, em formato de semi-arena, que Rodrigo Frota, o cenógrafo, está idealizando e construindo.

CP - Você comenta que busca o sertão subjetivo com “As Velhas”. Explique sua frase, por favor.

LM - Eu falei isso num contato com os atores para apontar uma das possibilidades de leitura do texto. A peça de Lourdes Ramalho cruza a dimensão político-social com a dimensão pessoal, mas dá relevância a esta última, sem esquecer a primeira. Explico: Os “vilões” estão fora de cena: não há coronéis, mandantes, governantes, nem qualquer outro representante dos poder econômico ou político que apareça de forma explícita no texto.
Falam-se deles, mas eles não aparecem. Para mim foi uma pista. Olhar para o sertão que se inculca no espírito das pessoas, que sofrem a ação dos inimigos que não são mostrados.
Aí eu imaginei que o corpo e as emoções dos atores deveriam caminhar por uma estrada subjetiva como se buscássemos responder, numa multiplicidade de pontos de vista, à seguinte pergunta: O que tantos anos de desmando e descaso no sertão fizeram com o corpo e coração do sertanejo? E aí passamos a olhar o sertão pelos olhos desses seis personagens, que vivem seus dramas passionais em meio à secura da terra, espremidos entre a impotência ou revolta para mudar a realidade.



CP -  Você já realizou espetáculos tragicômicos, como “Atire a primeira pedra”. “As velhas” parece ter a sutileza do humor, mesmo em momentos dramáticos. Concorda?

LM - É verdade, mas a raiz desta mistura já está no texto. Apenas acentuei este traço na encenação: saber rir nas situações mais dramáticas; aprendi isso fazendo Beckett. E há um detalhe importante no caso de “As Velhas”: o humor tira aquela sensação de piedade, “que coitadinhos!”, como se estivéssemos vendo um problema de cima e não participássemos dele. Quando o humor atravessa as cenas, os momentos tensos e as paixões, eu penso que é possível um nivelamento com os nossos próprios sentimentos e modos de pensar. Ou seja, o riso é tão demolidor quanto a tragédia; e universal para qualquer um de nós, no sertão ou nas geleiras.

CP - Como aconteceu a escolha do elenco? Quais critérios foram utilizados na seleção feminina e masculina? “As Velhas” é um trabalho fincado no ator?

LM - O elenco já estava formado, três atores e três atrizes (Andréa Elia, Cláudia di Moura, Jussara Mathias, Anderson Dy Souza, Jefferson Oliveira, Fernando Santana). Fiz uma pequena troca de papéis, nada mais do que isso. O trabalho é realmente centrado no ator, em suas possibilidades vocais e corporais, na capacidade de construir um corpo, que fica, muitas vezes fora do lugar, como identificado com a terra, os animais as plantas, os obstáculos. Isto tudo faz com que, em alguns momentos, o corpo assuma uma postura não usual, marcada pelo contato com a adversidade, mas também com a beleza trágica. É um caminho pelas ações físicas, que já vem desde Stanislavski, Grotowski, Barba, Lecoq, Decroux, mas que está em todo lugar.

CP - A concepção de seu trabalho é baseada no diálogo. De que maneira este estilo de trabalho influencia “As Velhas”?

LM - O teatro é a arte do diálogo dentro e fora do palco. Encaro o processo de trabalho de forma coletiva, com atores, técnicos, criadores, equipe, espectadores. É um processo contínuo de construção. Hoje se questiona bastante e ideia do diretor sabe-tudo que vem com a concepção pronta e os atores apenas executam. Este nosso processo é um vaivém entre pensar e fazer, construir e destruir, morrer e renascer. Por isso gosto de abrir os ensaios para equipe logo nos primeiros dias. O olhar de fora vem e contribui também em plena ebulição do fazer. Isto não quer dizer que o diretor seja apenas um mero mediador; ele deve ter propostas, saber explorar as potencialidades do ator, dialogar com suas qualidades e dificuldades para manter o rumo da encenação.

CP -  Pretende pontuar a trilha sonora com referências de sua memória musical? O que leva em conta no momento de inserir a trilha e os ruídos?

LM - A trilha está sendo feita pelo músico Deco Simões, com quem já trabalhei uma vez. É construída a partir das sugestões dele e da sua presença nos ensaios para perceber a atmosfera, a partitura de cada cena, o desenho da ação. Ele havia sugerido o uso de sons extraídos de objetos em cena como ponto de partida e a isto se juntou uma trilha original composta para dialogar, às vezes contrapor, os climas da encenação. É uma trilha que aproxima a temática do sertão de um mosaico musical contemporâneo.

CP - Fale, por favor, da escolha dos figurinos, adereços, cenários, iluminação e da busca por uma estética particular no universo da temática sertaneja.

LM -  Cada área desta é conduzida por um profissional: Miguel Carvalho nos figurinos, Rodrigo Frota em cenário e adereços, Marie Thauront na maquiagem e Luiz Renato na iluminação.
As propostas de cada um integram o campo de diálogo da encenação. O melhor é que eles estão presentes nos ensaios e interagem entre si e comigo, buscando uma interação entre os elementos. O que une todos eles é a ideia de que não queremos reproduzir um sertão naturalista no palco. O universo simbólico é que dá o tom nas diversas camadas da encenação: o espaço mítico, o plano da concretude e a realização visual do imaginário das personagens.

CP - Sua trajetória é pontuada por reconhecimento. Em 2009, “Policarpo Quaresma” recebeu 5 premiações no Braskem. E, 2010 “A última sessão de teatro” teve quatro indicações. O que significam prêmios para sua carreira?

LM -  Os prêmios são estímulos, da mesma forma que a recepção do público, entendendo aí as amplas possibilidades críticas da recepção; ou seja, quer ele goste, quer não goste do que vê. É que nossa arte é tão efêmera, que uma palavra dita no palco, o desenho de um gesto, o sopro da respiração do ator se dissolvem no tempo. Então, prêmios, críticas, retornos e quaisquer outras formas de registro e memória nos aliviam da sensação de efemeridade e faz a obra permanecer por mais tempo no mundo.

CP - Além de dirigir, você também escreve. Como define sua dramaturgia.

LM -  É engraçado que eu encontro as pessoas e em geral, elas se espantam:  
“Ah, agora você também está escrevendo!”. Na verdade, eu comecei a fazer teatro, atuando e escrevendo peças. Depois é que abracei a direção e não mais larguei. Mas sempre tive um pé na dramaturgia, mesmo enquanto diretor. Quando monto um texto, dramatúrgico ou literário, sempre faço adaptações cênicas, promovo interlocuções com ele. É o que Peter Brook chama de “dialética do respeito e do desrespeito ao texto”. Quando fiz “Policarpo Quaresma”, chamei Marcos Barbosa para fazer a adaptação. Depois da peça pronta, que é um belo trabalho deste dramaturgo primoroso, iniciei o processo de encenação, que, naturalmente, por conta de meu método, promoveu alguns diálogos com o texto adaptado.
Aí, certa feita, ele me disse; por que você não escreve seus próprios textos? Foi como se ele tivesse me dado um recado mais ou menos assim: “Por que ao invés de ficar metendo a mão no texto dos outros, você não faz logo o seu?”. No ano seguinte propus a Harildo escrever e dirigir “A última sessão de teatro”. Em homenagem aos seus 70 anos de vida deste grande ator. E aí retomei meu gosto pela dramaturgia. Agora, acabei de ser contemplado no Edital da Funceb – Prêmio Estímulo à criação dramatúrgica, que é uma excelente iniciativa: incentivar autores emergentes ou não a escrever seus textos e depois fazer uma leitura dramática, incentivando-os a encená-los depois. Fiquei feliz em ter sido escolhido com a proposta de “Senhora dos infiéis”, principalmente porque a escolha é feita por uma comissão que lê os projetos sem saber quem são os autores. E quanto à linha da dramaturgia, para mim, é uma construção. Tenho me interessado ultimamente por temáticas brasileiras rurais, urbanas ou históricas, que colocam no palco a crise da representação.

CP -  Quais as maiores dificuldades de se fazer teatro na Bahia?

LM -  Sempre foram muitas, mas a maior delas é o artista sobreviver de teatro. Poucos conseguem, e aqueles que o fazem, na maioria, não vivem das peças que encenam e sim de outras atividades teatrais que têm um campo mais aberto e ao mesmo tempo mais seguro de retorno: ensino, oficina, cursos, teatro-empresa, televisão, publicidade. Mas isso não quer dizer que tenham uma vida segura. Ninguém está seguro de nada hoje em dia.
Tudo é feito com muita dificuldade. Para se ter uma ideia, a profissão de ator no Brasil
foi regulamentada em 1978, mas se você procurar saber quantos assinam carteira, têm
seguro desemprego, plano de saúde, aposentadoria ou FGTS, vai se assustar. Talvez não chegue a cinco. É uma lei que precisa de uma política pública para se fazer cumprir, pelo menos no que se refere às instâncias de governo, como é caso da aposentadoria.



CP -   Acredita na política de editais?

LM -  Os editais têm a grande vantagem de democratizar o acesso e transferir a cada edição a escolha dos projetos para uma comissão de artistas e especialistas. Ou seja, o Estado disponibiliza os recursos, mas quem escolhe são outras pessoas. Isto favorece o não-intervencionismo estatal; ao mesmo tempo a própria burocracia estatal cria obstáculos para que a iniciativa dê certo no prazo a que se propõe. Quando alguém inscreve um projeto, há todo um planejamento que envolve cumprimento de pauta, compromisso de elenco, entre outras coisas. Mas, e muitas vezes, a saída do recurso é demorada e faz com que aquele projeto inicial tenha que ser revisto porque os artistas e técnicos originalmente convidados já tomaram outros rumos em sua vida profissional. O mercado de instabilidade no qual estamos inseridos é muito cruel.

CP - “Toda generalização é perversa”; Sua versão de “Toda unanimidade é burra”, de Nelson, Rodrigues tem uma pitada a mais.

LM -  Se você se refere a o espetáculo “Atire a primeira pedra, eu diria que sim”, porque quis fazer um Nelson – a partir das crônicas de “A vida como ela é” – de uma forma escrachada, utilizando recursos considerados de “segunda mão” por alguns críticos e artistas, como a chanchada, os filmes B, o cinema trash, a chamada música brega brasileira e por aí vai. O espetáculo em geral agradou. Já está entrando em seu terceiro ano, fazendo agora uma temporada no interior, prometendo voltar em 2011. Mas nem todos gostaram. Alguns o tacharam de besteirol – como se fosse um desqualificativo, porque para mim não é. A Cia. Baiana de Patifaria sempre fez besteirol com naipe de atores de primeira linha ao longo de seus mais de vinte anos de carreira e que muito nos orgulha; ela mantém a tradição dos espetáculos que privilegiam a cena e o virtuosismo do ator. Às vezes, aqui se tem uma visão provinciana e, ao mesmo tempo, sub-colonialista na apreciação das peças locais. Por exemplo, quando um grupo de São Paulo ou Rio monta um clássico e faz inserções de referências contemporâneas ou dão uma cor própria, brasileira, faz citações a maioria diz “Oh, que genial!" Mas quando nós o fazemos, é comum se ouvir: “Pra que isso. A peça acabou virando um besteirol”. E aí tome-lhe mais preconceito. Eu já amadureci o suficiente para colocar no palco aquilo que desejo; se eu quiser fazer referências contemporâneas numa peça histórica ou não-histórica, não é para agradar ao público, é que porque eu considero que dá um sentido vivo à encenação e que, muitas vezes, é da iniciativa do próprio ator, o que eu acho maravilhoso.


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